Tuesday, June 12, 2007

Desporto em Portugal no final do século XIX - Os primeiros anos, os primeiros clubes, as primeiras vitórias

O panorama desportivo em Portugal no final do século XIX não era muito animador. A prática desportiva era algo praticamente desconhecido e inacessível para a esmagadora maioria da população, só algumas franjas da burguesia e da aristocracia eram adeptas e praticantes de desporto, e mesmo estas enfrentavam o preconceito dos seus pares sociais. Os sectores mais altos da sociedade portuguesa, conservadores e seguidores da moral e dos bons costumes, ignorantes das vantagens do exercício físico e do desenvolvimento e da implantação que o desporto estava a obter em países como a Inglaterra e a França, censuravam a minoria que insistia na prática desportiva, que procurava os espaços ao ar livre, que fugia do cinzentismo da cidade, que olhava para o desporto como um meio de convivio, para além das vantagens físicas e morais que dele poderiam advir.
O fraco desenvolvimento desportivo que sucedia em Portugal nesta época teria as suas raízes no século XVIII, quando, por motivos aparentemente inexplicáveis, os jogos e as actividades ao ar livre deixaram de fazer parte dos hábitos dos portugueses, o que provocou uma certa degeneração física e moral, conforme nos diz um clérigo deste tempo, o Padre Manuel Bernardes:

As espadas largas degeneraram em cotós, e os capacetes se trocaram em perucas; já o pente em vez de se fincar na barba ensaguentada se finca publicamente na cabeleira, alvejando com polvilhos. Cheiram os homens a mulheres; não a Marte, mas a Vénus. Quem havia de imitar o grande Albuquerque, prendendo a barba no cinto, se já não há novas de cintos; nem de barbas? Quem haveria de sair aos leões em África; se é mais gostoso estar no camarote em Lisboa, gracejando com as farsantes e atirando-lhes já com chiste, já com dobrões? Ou como se haviam adestrar em ambas as selas, andando pelas ruas bamboleando nas seges? Amoleceu-nos a infusão dos costumes estrangeiros, que veneramos, devendo aborrecê-los; e nós, que estamos no fim da terra, ficamos no meio do mar das suas depravações.

Esta degeneração física e moral prolongou-se pelas décadas seguintes, em virtude do desprezo que era dedicado à prática desportiva. Ramalho Ortigão, em 1875, dá-nos um testemunho disso mesmo, nomeadamente dos efeitos que a inactividade física tinha na juventude:

Os vossos filhos, vimo-los no liceu, no dia do primeiro exame, pálidos de concentração e de susto, imóveis, estáticos, com os olhos pasmados na espessura dos seus juízos, lembrando-se um pouco mais das orações que vós rezastes por eles, ó mães, do que das lições que vós lhes destes, ó mestres! Tinhamo-los também visto no Passeio Público, em noites de concerto, dançando ao pé do quiosque, eles fingindo-se grosseiros para se darem o chique dos velhos colegiais, elas sérias e graves, voltando o rosto por cima do ombro para contemplarem, como pequenas senhoras, a cauda hipotética dos seus vestidos. Elas e eles são pálidos, têm gengivas esbranquiçadas, os dentes baços, as pestanas longas, as pálpebras oftálmicas, os cantos da boca levemente feridos, o sorriso triste, os movimentos indecisos e fracos, o olhar quebrado. Precisam de tomar banhos frios, de comer carne ao almoço, de beber uma colher de óleo de fígado de bacalhau todos os dias, de fazer ginástica e de que se lhes corte o cabelo... E quanto à educação do espírito, sabem pouco e mal o que lhes ensinaram, não sabem quase nada o que deviam saber. Pelo que respeita ao corpo, se vêm de um bom colégio, sabe de ginástica o suficiente para fazer deles maus arlequins, mas nunca empregaram a sua força nos exercícios verdadeiramente úteis a um homem. Não estão habituados à fadiga das marchas, não sabem defender-se se os esbofetearem, não sabem nadar, desconhecem os princípios mais rudimentares da higiene... (1)

Também na literatura encontramos um testemunho ilustrativo deste sentimento de decadência física e psicológica que afectava as gerações mais jovens do Portugal oitocentista, conforme encontramos na obra Os Maias de Eça de Queiroz, editada no ano de 1888, e onde Afonso da Maia defende a adopção da tourada como desporto nacional, de forma a incutir na juventude o vigor e a coragem que a arte de lidar o toiro acarreta:

O verdadeiro patriotismo seria, em lugar de corridas, fazer uma boa tourada... Cada raça possui o seu “sport” próprio, e o nosso é o toiro: o toiro com muito sol, ar de dia santo, água fresca e foguetes. A vantagem da tourada é ser uma grande escola de força, de coragem e de destreza. Em Portugal não há instituição que tenha uma importância igual à tourada de curiosos. E acredite numa coisa: é que se nesta triste geração moderna ainda há em Lisboa uns rapazes com certo músculo, a espinha direita, e capazes de dar um bom soco, deve-se isso ao toiro e à tourada dos curiosos... Não temos o “cricket”, nem o “football”, nem o “running”, como os ingleses; não temos a ginástica como ela se faz em França; não temos o serviço obrigatório, que é o que torna o alemão sólido. Não temos nada capaz de dar a um rapaz um bocado de fibra, senão badamecos derreados da espinha a melarem-se pelo Chiado.

No entanto, e apesar da fraca tradição desportiva no Portugal oitocentista, começam a formar-se as primeiras associações ligadas à prática desportiva. Desta forma a 6 de Abril de 1856 surge a Real Associação Naval de Lisboa, no seguimento duma tradição de desportos náuticos, nomeadamente o remo e a vela, que já vinha do reinado de D. Maria II, sendo de referir que esta colectividade desportiva é actualmente a mais antiga da Península Ibérica. No entanto a prática de desportos náuticos não se limitava à capital do país, também no Mondego, ao largo da Figueira da Foz, e no Douro se organizavam regatas, e desta forma em 1876 é fundado o Clube Fluvial Portuense. A implementação dos desportos náuticos em Portugal ficou-se a dever, em grande parte, à comunidade inglesa instalada no nosso país, sendo esta realidade mais evidente na cidade do Porto.
Ainda na década de 70 é fundado em Lisboa outro clube histórico e que também perdurou até aos dias de hoje, o Real Ginásio Clube Português, fundado em 1875 e essencialmente vocacionado para os desportos acrobáticos, sendo de destacar a organização, a cargo deste clube, em 1885 do primeiro concurso nacional de ginástica, e que contou com a participação de várias associações e clubes, tais como os Bombeiros Voluntários, o Asilo Municipal, o Clube Gimnastico de Lisboa e a Casa Pia, instituição que teve também um papel importante na promoção da educação física em Portugal. Toda esta intensa actividade promovida pelo Real Ginásio Clube Português durante as últimas décadas do século XIX culminou naquela que terá sido uma das primeiras vitória internacionais do desporto português, a medalha de ouro ganha por João Possolo em 1893 numa competição de ginástica realizada em Badajoz.
Também o ciclismo teve grande adesão em Portugal nesta época, em 1891 é fundado o Real Clube Velocipédico de Portugal, logo seguido pelo Real Velo Clube do Porto, fundado pouco tempo depois. Em 1896 é inaugurado em Algés o primeiro velódromo português, solenemente baptizado “D. Carlos”, no ano seguinte é a vez da Póvoa de Varzim e do Porto inaugurarem os seus velódromos. Contudo, e no que diz respeito à “velocipedia” (termo usado na época para designar o ciclismo), é obrigatório realçar o nome de José Bento Pessoa, ciclista profissional na equipa francesa do Phoebus desde 1898, vencedor de inúmeras corridas em países como Espanha, Itália, França e Brasil, e recordista mundial dos 500 metros em pista, recorde batido em 1899 no velódromo de Chamartin, em Madrid, tornando-se desta forma no primeiro recordista mundial do desporto português (2).
Em relação à modalidade “rainha” do actual panorama desportivo português, aquela que mais paixões desperta, o futebol, é também neste período que encontramos o seu momento de fundação. A primeira vez que se terá praticado futebol em Portugal terá sido em 1875, por iniciativa do cidadão inglês Harry Hilton, que reuniu um grupo de amigos no campo da Achada, junto à localidade da Camacha na ilha da Madeira, para disputarem um “jogo da bola”, facto ainda hoje recordado por uma placa evocativa presente no local. Esta iniciativa não terá tido seguimento pois, segundo rezam as crónicas, a bola usada nesta partida terá ficado completamente desfeita. Ou seja, teremos de considerar a ilha da Madeira como o berço do futebol em Portugal, e mais uma vez a influência inglesa a fazer-se sentir nas primeiras páginas de história do desporto português. À semelhança do que se tinha passado com os desportos náuticos, também no futebol a presença britânica é uma constante nos seus primórdios. Alguns anos mais tarde, em 1882, a população de Lagos assiste a um jogo de futebol disputado entre as tripulações de dois navios ingleses que estavam atracados nesta cidade algarvia. Em 1886 os irmãos Pinto Basto – Guilherme, Eduardo e Frederico – membros duma abastada família lisboeta, com negócios no ramo da navegação, ao regressarem dos seus estudos em Inglaterra trazem consigo aquela que terá sido a primeira bola de futebol vista em Lisboa, e cedo despertam junto dos seus amigos o gosto pelo “jogo da bola”, que se disputava regularmente nas quintas do Bonjardim e da Fronteira situadas na zona de Belas. No entanto, em Outubro de 1888 os irmãos Pinto Basto juntamente com os seus companheiros resolvem fazer uma apresentação do futebol à sociedade lisboeta, e para isso promovem um ensaio em Cascais, nos terrenos da Parada junto à Cidadela. Esta demonstração terá tido algum sucesso, o que levou a que a 22 de Janeiro de 1889 se organizasse um jogo, com um cariz mais sério e formal, entre duas equipas, uma de portugueses e outra de ingleses, vindo estes últimos da Casa Graham e do Cabo Submarino de Carcavelos. A partida disputou-se em Lisboa, no Campo Pequeno, nuns terrenos onde actualmente está situada a praça de touros, e terminou com a vitória da equipa portuguesa por 2-1. Ainda neste ano o Real Ginásio Clube Português abre uma secção de futebol para que os seus associados pudessem praticar esta modalidade que começava a despontar em Portugal. Com o “Ultimatum” inglês de 1890 tudo o que representasse a Inglaterra era visto com maus olhos pela sociedade portuguesa, no entanto, o futebol, apesar da sua origem inglesa, conseguiu de certa forma passar imune a esta onda anti-britânica, e é precisamente nos primeiros anos da década de 90 que assistimos, nas duas principais cidades do país, Lisboa e Porto, ao surgimento dos primeiros clubes e grupos dedicados ao futebol:, logo em 1890 forma-se o Club Lisbonense, primeiro clube exclusivamente dedicado ao futebol; em 1893, só em Lisboa, são fundados cinco clubes, o Estrela Football Club, o Club Braço de Prata, o Clube Tauromáquico, o Football Club Esperança e os 40 da Era, enquanto que no Porto surgem o Oporto Cricket Club e o F. C. do Porto; entre 1895 e 1896 surgem, também na capital portuguesa, o Académico Futebol Club, o Futebol Clube Alcantarense e o Campo de Ourique; enquanto que em 1898 assistimos ao alastrar do entusiasmo pelo futebol a outras cidades do país, e em Viana do Castelo é fundado o Sport Clube Vianense. Em 1894 é o próprio rei D. Carlos que patrocina a primeira taça disputada em Portugal, a Taça d´el Rei, disputada no dia 2 de Março por uma equipa de Lisboa e por outra do Porto, inserida nas comemorações do V centenário do nascimento do Infante D. Henrique, e que terminou com a vitória dos lisboetas por 2-0. De referir que muitos destes grupos e clubes de futebol tiveram vida breve, não chegando, a maioria, ao início do século XX (3). É precisamente neste século, ultrapassada esta primeira fase oitocentista, onde o amadorismo era o principal condimento, que o futebol português, e o desporto em geral, aliado ao fenómeno do associativismo, inicia uma longa caminhada de vitórias e de derrotas, de alegrias e de tristezas, mas caminhando sempre em direcção ao coração dos portugueses, que têm nos desportistas portugueses um dos seus principais motivos de orgulho, ou não fosse Portugal o berço de campeões olímpicos como Carlos Lopes e Rosa Mota, ou a pátria duma figura mundialmente famosa, como é Eusébio da Silva Ferreira.

1 – Cf. SIMÕES, António; SERPA, Homero – Glória e Vida de Três Gigantes, ed. jornal A Bola, 1995, (págs. V-VII).

2 – Cf. Portugal Contemporâneo, dir. António Reis, Volume I, ed. Publicações Alfa, 1996, (pág. 772).

3 – Cf. COELHO, João Nuno; PINHEIRO, Francisco – A Paixão do Povo – História do Futebol em Portugal, ed. Afrontamento, 2002, (pags. 49-60).

No comments: